Ingredientes regionais, e a construção de uma genuína coquetelaria brasileira.

O movimento de valorização das matérias-primas locais não é novidade para chefs no Brasil e no mundo. Este é, aliás, um discurso recorrente no universo da gastronomia. Mas a coquetelaria também não demorou muito a entrar nessa seara. Isso envolve se relacionar com  fornecedores locais e consumir seus produtos. Em vez de mirtilo, por que não usar um autêntico morango silvestre da Mata Atlântica? Assim, novas gerações de bartenders vêm escolhendo o melhor caminho: aprender as bases clássicas para depois adaptá-las aos elementos regionais e ressignificar tendências ao redor do globo. 

Por aqui, a mixologista Néli Pereira - embaixadora da YVY - foi precursora na investigação dos ingredientes dos biomas brasileiros e suas possibilidades de expressão na coquetelaria. Para ela, "mixologia pode seguir os passos do que a gastronomia brasileira já aprendeu, mas sinto que estamos ainda muito no "rasinho" de uma primeira etapa que é o uso de ingredientes nacionais. Os profissionais estão começando a usar mais elementos brasileiros nas cartas, nos coquetéis. Mas ainda há pouca pesquisa séria e profunda. Porém, estamos no caminho". 

Cada país, cada região possui suas tradições de algumas bebidas e não de outras. Isso tem a ver com hábitos culturais, com terroir, com clima, com solo, enfim, com cultura no sentido de costumes mesmo. O Brasil não é diferente. Regra geral, nossa história está relacionada aos fermentados, e aos macerados de cascas, ervas e raízes - que estão inclusive nos nossos botecos. "Sobre o público descobrir isso - na medida em que o profissional do bar descobrir, o público também vai. É um trabalho quase didático e antropológico, além de gastronômico - esse de descobrir sabores, pesquisar ingredientes e aí fazer com que o público tenha curiosidade e vontade de experimentar. Assim, apresentar ao brasileiro o que é nosso é um prazer, além de uma missão para mim", divaga Néli.

Neste sentido, o trabalho do bartender envolve também quebrar tabus e preconceitos do público em relação a ingredientes super brasileiros, mas que acabam recebendo a pecha de 'exóticos' por pura desinformação, ou melhor, o desestímulo à informação praticado por indústria e mercado, em geral ávidos por caminhos mais rápidos e palatáveis. Néli pontua que "é muito mais trabalhoso ir in loco descobrir novos sabores, produtores, ingredientes - e pesquisar e testar sobre eles - do que repetir ou replicar o que já está sendo feito fora. Mas isso traz dois problemas: a falta de sustento e sustentabilidade da cadeia produtora local, e a consequente ignorância com aquilo que nos cerca; além de encarecer o trabalho e de nos distanciar de nossas raízes". Dentro desta perspectiva, tem pé de boldo nascendo do asfalto e árvores de aroeira caindo sobre as nossas cabeças nas ruas, mas compramos o grapefruit mais caro do mercado porque achamos que é isso que as pessoas gostam. "Ter uma noção de aromas, sabores e uma pesquisa disso ajuda bastante porque, no fim das contas, a minha coquetelaria é sobre o ingrediente, é sobre o Brasil", conclui. Mesmo longo, o caminho de valorização do que é nosso na coquetelaria é uma realidade e, felizmente,  já tem muita gente ligada nisso.